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Couverture de Ah, os dias felizes

Ah, os dias felizes

de Samuel Beckett

Texte original : Oh les beaux jours traduit par Alexandra Moreira da Silva


Ah, os dias felizes : Da Flandres ou da tradução dos ventos

by Alexandra Moreira Da Silva

Samuel Beckett escreve Happy Days entre 1960 e 1961. A peça viria a ter estreia quase imediata em Nova iorque, numa encenação de Alan Schnei- der, com a actriz Ruth White no papel de Winnie. No mesmo ano (1961), igualmente em Nova iorque, tem lugar a primeira publicação do texto na Grove Press, e em 1963 será a vez das Éditions de Minuit publicarem a tradução francesa – Oh les beaux jours –, realizada, como é sabido, pelo próprio autor. Em Setembro desse mesmo ano, a peça é criada em francês na Bienal de Veneza, transformando-se num enorme sucesso aquando da sua apresen- tação no Théâtre de l’Odéon, em Paris, na encenação de Roger Blin, com os míticos Madeleine Renaud e Jean-Louis Barrault nos papéis de Winnie e Willie, respectivamente. Beckett terá assistido à quase totalidade dos en- saios. Como refere Roger Blin, “juntos ... procuravam o ritmo de cada frase e do espectáculo”.


Quando, em 1965, Roger Blin encena Oh les beaux jours em Turim, em ita- liano, com a actriz Laura Adani, depara-se com a impossibilidade de retomar o ritmo encontrado para o espectáculo francês: “Beckett constrói frequentemen- te frases sem verbo, muito curtas, com uma única palavra seguida de um ponto, depois de uma palavra que contradiz a precedente, ou a confirma, ou acrescenta uma nuance .... A língua italiana ... não permite a supressão dos artigos, dos verbos, a redução das frases até ao osso.”1 De uma forma simples, Blin coloca aqui uma das questões maiores da tradução – questão que assume uma enor- me importância quando se trata de traduzir a obra beckettiana: na verdade, não traduzimos uma língua, mas sim aquilo que o texto faz à língua, o que pressu- põe pensarmos em termos de uma teoria geral da linguagem que tem em conta “o sentido do ritmo, o sentido do contínuo corpo-linguagem”.2 Ora, para Henri Meschonnic, a oposição entre “obra original” e “tradução” só acontece porque o que valorizamos tradicionalmente e culturalmente é o “descontínuo do sig- no”. O contínuo corpo-linguagem pressupõe o encadeamento dos vários ritmos, ou seja, a organização do movimento da palavra. Neste sentido, pensar a tra- dução – e muito particularmente a auto-tradução – significa pensar a partir da mesma origem, do mesmo gesto: o gesto texturizante da escrita. O que importa “é a textura”, afirma Adorno nas Notes sur Beckett, “a prosa não é unicamente organizada pelo sentido”.


Da tradução dos ventos


Em Oh les beaux jours sopram ventos de outra língua. Beckett explora subtil- mente esta estranheza. quando escreve/traduz em francês, sabe perfeitamen- te que poderá escapar aos automatismos inerentes ao uso da língua materna. E, contudo, atrever-nos-íamos a dizer que é essa consciência que lhe permi- te deixar ecos dessa mesma língua na organização do movimento da palavra: “Chanter trop tôt est funeste, je trouve toujours”/“To sing to soon is fatal, i always find” (Acto ii). Partimos, pois, do princípio de que Oh les beaux jours não é uma tradução de Happy Days, mas sim, como refere Jean-Jacques Mayoux, “a história de uma segunda criação”, ou seja, ouvimos uma mesma voz em duas línguas: “Beckett é um escritor de génio nas duas línguas porque conserva tran- quilamente, de uma para a outra, a mesma voz, que lhe é absolutamente pró- pria, os mesmos ritmos e batidas do coração, as mesmas paragens e as mesmas formas de retomar tudo aquilo que manifesta as suas aporias”.


Mas, por outro lado, talvez possamos falar de uma viragem na orientação da sua escrita que estará intimamente associada à mudança de língua. Michael Oustinoff5 divide a criação beckettiana em três períodos: o primeiro, de 1929 a 1945 – Beckett escreve em inglês e, em 1939, com a ajuda de Alfred Péron, inicia a tradução de Murphy, que só viria a ser publicada em 1947. O segundo período, de 1945 a 1954, corresponde ao momento em que Beckett começa a escrever em francês, língua que lhe oferece o estilo depurado (“sem estilo”) que o autor procurava e que lhe permite criar uma certa distanciação em relação à própria escrita. Eleutheria (1947) é a primeira peça escrita em francês. Mas a primeira obra escrita e publicada originalmente em língua francesa viria a ser Molloy (1950). Seguir-se-iam Malone meurt (1951) e En attendant Godot (1952), cuja estreia em palco (1953) viria a obter um sucesso inesperado, facto que terá levado Beckett a voltar à língua materna, auto-traduzindo a peça para inglês (1954). Num terceiro momento, de 1954 a 1989, verifica-se um intenso regres- so à escrita em língua inglesa (é neste período que escreve Happy Days), porque, como explica Charles Juliet reproduzindo as palavras do próprio Beckett, “esta língua passou a ser para ele a língua estrangeira”.6 Na verdade, nesta última fase, escrita e auto-tradução acontecem nos dois sentidos, o que constitui uma das singularidades da obra beckettiana.


(Leia mas)


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