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Couverture de Music-hall

Music-hall

de Jean-Luc Lagarce

Texte original : Music-hall traduit par Alexandra Moreira da Silva

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Music-hall : “Um balanço e um virar de página”

Jean-Pierre Thibaudat*

Sete meses após os resultados do exame, em fevereiro de 1989, surgiu-lhe uma ideia para uma nova peça, nos antípodas do tema da doença e que falava sobretudo do palco, do espetáculo: “Escrever e montar ao mesmo tempo um espetáculo inspirado – muito livremente – em Joséphine Baker”, anotou. Lançou-se ao projeto com entusiasmo. Pouco depois, em abril ou maio, a escrita de Music-Hall estava concluída, e a peça foi enviada a Lucien Attoun, que se apressou a propô-la à rádio. O comité de leitura aceitou-a e, em julho, a peça foi gravada para o programa Nouveau Répertoire Dramatique, e seria transmitida na reentré seguinte pelo canal France Culture. Jean-Luc propõe-se encená-la ele próprio em Besançon; no início de agosto, a distribuição dos papéis está concluída, e os ensaios começam no final desse mesmo mês. A 18 de outubro, Music-Hall estreia-se no Espace-Planoise. Ala, que se faz tarde!, como gostava de dizer Jean-Luc.


Em cena, a Rapariga ladeada pelos dois boys. Cantora de regresso aos palcos, atriz de província que teve há muito os seus momentos áureos, celebridade que se despenhou pelos degraus da glória até aterrar no circuito dos salões de festas, a Rapariga volta a pavonear-se, evoca as antigas digressões com os dois boys, que se foram sucedendo ao longo dos anos (os primeiros a desempenhar esses papéis foram, sem dúvida, o marido e o amante, que entretanto se perderam pelo caminho), por motivos de cansaço ou de desgaste, como adereços gastos que é necessário substituir. Digressões cada vez menos gloriosas, até à presente noite, em que ela manifesta a esperança de que o público acorra e lhe dê o justo valor. Ela fala-nos dos percalços da profissão: a porta ao fundo do palco por onde esperava fazer a sua entrada, mas que nem sempre existia; o banco alto a que se resumia o cenário, mas que nem sempre se conseguia arranjar: davam-lhe uma cadeira de encosto, ou mesmo um banco de três pernas usado na ordenha das vacas. Fala-nos do ar trocista do diretor, do gravador de bobinas que deixa de funcionar no momento mais inoportuno ou que não existe de todo, do público nem sempre caloroso e atento. Regra geral, uma mulher da idade dela já não atua, limita-se a evocar os tempos em que atuava; porém, a Rapariga tem charme, é divertida, conquista-nos.
A peça oscila entre uma leve melancolia que sabe rir de si mesma, uma imperecível ternura pela profissão do ator e um gosto por determinados momentos que nada dizem além da sua vacuidade (nada se passa), com Beckett sentado na plateia, no papel de espectador atento. No final da peça, a Rapariga consulta o relógio, são 21:20, eles “já não virão”. É o momento do derradeiro golpe de rins da artista visceralmente orgulhosa de o ser. “E de qualquer forma, representamos”, e “faço batota até ao limite da batotice, os olhos fixos nesse buraco negro onde sei que não há ninguém”, diz “a Rapariga”, a quem todos chamam Madame, ou mesmo Ma’ame.
Lagarce gosta de digressões, assim como de estrelas em declínio, esses “losers” magníficos que “fazem pela vida” em digressões por salas de terceira categoria. Lagarce gosta de chegar a um teatro desconhecido, de lhe sentir o cheiro e as correntes de ar, de descarregar o camião com os técnicos e de voltar a partir na mesma noite, o cenário desmontado e carregado uma vez mais, de lutar contra o sono na autoestrada, enquanto vai contando peripécias do mundo do espetáculo – tagarela como é, sabe dezenas delas. Nesses finais dos anos 80, a descentralização do teatro está longe de ter sido conseguida, mas os espaços para a apresentação de espetáculos multiplicam-se. Teatros municipais, centros culturais, antigos cinemas, casinos, salas históricas, salas polivalentes, tudo isto mais ou menos acolhedor, mais ou menos bem dirigido. Há mais de dez anos que a Roulotte anda em digressão.
No programa do espetáculo, Jean-Luc Lagarce evoca recordações que falam da atmosfera, do ruído de fundo de Music-Hall. Ringo Willy Cat (ex-marido da cantora Sheila) saindo da estação de comboios de Besançon e afastando-se “de malas na mão e renunciando aos táxis”, para ir cantar, duas noites por semana, “os seus antigos sucessos num bar de strip-tease dessa fria cidade do Este”. Ou as “peripécias” relacionadas com as várias digressões do espetáculo Crébillon. Ou ainda esse cruzeiro do Figaro pelo Mediterrâneo, para o qual a Roulotte fora convidada: durante o espetáculo, viram, por duas vezes, uma espectadora levantar-se e voltar a sentar-se com um copo de Martini na mão.
Sem esquecer essa representação, numa noite de frio glacial, no belo teatro de Dole, que Jean-Luc relata numa carta a Dominique:


Poupo-te à descrição do estado alcoólico da equipa técnica municipal, que jogava às cartas atrás da cortina, a três metros de distância dos atores. Também não te descreverei uma abertura de cortina três minutos cedo de mais – os atores ainda não prontos, um tanto surpreendidos, mas desenvencilhando-se muito bem da situação – e isto porque o beberrão que devia abrir a cortina se fez substituir, à última da hora, por um dos seus amigos beberrões “que não tinha outra tarefa a cumprir – abro a cortina e piro-me, vou para casa, porque é sábado e não estou para me maçar mais”. Mas teve a delicadeza – aproveito para lhe agradecer aqui, já que na altura não tive ocasião de o fazer –, teve a delicadeza de não atravessar diagonalmente o palco, mas de sair sem que ninguém (do público) o visse. Contudo, é também verdade que, por mero acaso, a porta ficava do lado certo; se assim não fosse, nada nos garante que a ideia não lhe tivesse ocorrido.


Grandezas e misérias das digressões. Music-Hall é uma espécie de banquete em honra dessas memórias.
A ideia de base e o basso continuo da peça é uma canção de Joséphine Baker, “De temps en temps”. Este tema musical não se limita a ritmar o espetáculo com a sua atmosfera de café-concerto e as suas incontornáveis palavras de amor (“não me digas que me adoras, mas pensa em mim de vez em quando”) – é a própria peça que, como que contagiada pela canção, repete palavras e fórmulas que se convertem numa espécie de refrães (“trocista”, “lenta e desenvolta”, “e quem pode o mais, pode o menos”, etc.), sem porém se resumir a isso: a peça está cheia de imprevistos, de fugas. Ambivalência lagarciana.


Sob o título Quelques éclaircies, Jean-Luc alinhavou algumas ideias em cinco páginas datilografadas, datadas (pelo seu punho) de 3 de fevereiro de 1989 – no momento em que lhe ocorreu a ideia de fazer qualquer coisa a partir de Joséphine Baker. Os investigadores do Idaho, caros a Jean-Luc, dissertarão longamente sobre essas páginas, já que, sob esse título tão abrangente, encontramos o ponto de partida de diversas peças – Juste la fin du monde Tão Só o Fim do Mundo, Histoire d’amour (derniers chapitres) História de Amor (últimos capítulos). Estamos ainda longe de Music-Hall, mas perto de Joséphine Baker. Nessas folhas, tudo se passa numa cozinha onde o rádio e a televisão estão sempre ligados e, entre boletins informativos que não dão boas notícias do mundo, transmitem canções de Joséphine Baker. Em cima do frigorífico há bananas, fonte de um gag referencial (numa das suas coreografias, a jovem Joséphine surgia nua à exceção de uma tanga de bananas presa à cintura). A cozinha é a da Rapariga. Sobre a mesa, ela e os seus dois acólitos constroem uma cidade em miniatura, “um jogo para desenfado dos solitários, como um puzzle” – é a cidade que existe lá fora, “o lugar onde vivem”.
Segunda pista: “Ou então ela tem um filho, e o filho, ‘digamos’, o filho morreu, e ela, ela representa e dá continuidade ao que ele tinha começado antes de morrer”. Lagarce especifica: “É como o quarto do filho de Liubov” (uma referência à peça O Cerejal, de Tchékhov).
Terceira pista: “Ou então era aí que eles os três viviam há muito tempo, quando jovens, ou quando crianças, digamos assim, crianças, admitamos. Fazer teatro é uma brincadeira, e eles brincavam a isso, digamos, quando eram crianças. Ela, essa Rapariga que está sozinha, ela continua. E trata-se da maqueta de um espetáculo que não chegaram a fazer. Ela recita a si mesma uma peça que não chegaram a fazer e que devia ter sido representada nesse cenário, em miniatura”.
Aproximamo-nos de Music-Hall. Mas Lagarce gosta da sua cozinha. Pensa em fatias de pão que saltam da torradeira no momento de uma “frase muito significativa dramaturgicamente”, ou melhor, pensa no ator dizendo que as fatias de pão hão-de saltar no momento de uma “frase muito significativa dramaturgicamente”, o que não deixará de ocorrer. Quer uma cafeteira elétrica “com uma luz vermelha, à noite, como o barco de Amarcord que passa, bom, estou a dispersar-me”. São páginas cheias de invenções espontâneas, que se divertem com os gags inventados. Jean-Luc sairá da cozinha para entrar num palco, a “cozinha” que ele conhece melhor. O palco de Music-Hall.


A peça, então inédita, é difundida pelo canal France Culture, com Judith Magre no papel da Rapariga. Antes da transmissão, Lucien Attoun, como habitualmente, conversa com o autor. Faz dez anos que foi transmitida pela rádio a primeira peça de Lagarce (Carthage, encore); Lucien convida-o a comentar o facto e Jean-Luc vai mais longe: ele vê em Music-Hall o “balanço” do trabalho de escrita e encenação que realizou nos últimos dez anos. Um balanço e um virar de página.


  • Excerto de “Chapitre treize: Samedi 23 juillet 1988”. In Le roman de Jean-Luc Lagarce. Besançon: Les Solitaires Intempestifs, 2007. p. 204-208.

Trad. Rui Pires Cabral.


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