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O doente imaginário

mise en scène Rogério De Carvalho

: O Espelho - três pistas de LeItura Para Começar

Alexandra Moreira Silva

O meu corpo é o lugar sem recurso ao qual estou condenado.
Michel Foucault


Tlim, tlim, tlim


“Um médico muitíssimo honesto, de quem tenho a honra de ser doente, promete, e quer comprometer-se perante os notários, fazer-me viver mais trinta anos, se eu conseguir obter-lhe uma graça de Vossa Majestade. Sobre esta promessa, disse-lhe que não lhe pedia tanto, e que ficaria satisfeito se se comprometesse a não me matar.”(1) A inspirada ironia de Molière relativamente aos médicos e ao exercício da medicina, presente em muitas das suas obras e escritos avulsos, como é o caso desta petição ao Rei, publicada na segunda edição de O Tartufo, em 1669, terá certamente contribuído para a sobrevalorização da questão autobiográfica nas peças do autor francês. A morte de Molière na noite da quarta representação de O Doente Imaginário, a 17 de fevereiro de 1673, na sequência de uma “fluxão no peito” de que Molière padeceria “há já vários anos” – ou seja, de uma forte constipação, de uma bronquite ou eventualmente de uma pneumonia –, não podia senão conduzir a um número considerável de leituras em torno da questão da morte, e muito particularmente da morte verdadeira e espectável daquele que, em cena, a teria simplesmente simulado.


Como é referido e amplamente documentado na nota introdutória à edição de O Doente Imaginário na conceituada coleção da Pléiade, não temos, até hoje, nenhum documento que prove que Molière sofresse de doença prolongada, de “melancolia hipocondríaca”, ou que tivesse vivido os últimos anos da sua vida angustiado com a perspetiva de uma morte próxima. Bem pelo contrário: “Se nos ativermos aos únicos factos verificados e aos testemunhos estritamente contemporâneos da sua morte”, afirmam os autores da referida nota introdutória, “constatamos que o que predomina é o espanto dos observadores perante a brutalidade do acontecimento”.(2) Molière terá, assim, morrido das consequências acidentais de uma infeção passageira, e não da derradeira crise de uma longa e penosa doença. Contudo, poder-se-ia argumentar que o próprio texto contradiz esta hipótese. Na cena 3 do Ato III, Argão e Beraldo têm como tema de discussão “Molière” e muito particularmente o facto de este recusar a ajuda da medicina: “Ele lá tem as suas razões para não querer nada disto”, afirma Beraldo, “e defende que só quem é forte e robusto tem força para aguentar os remédios e a doença; no seu caso, só tem força para aguentar as suas próprias mazelas”. Na verdade, aquilo que poderia ser uma espécie de confissão do autor relativamente ao seu estado físico, faz parte das modificações introduzidas no texto na edição das obras póstumas em 1682.
A morte abrupta do autor não lhe terá permitido concluir o texto para impressão. Depois de uma primeira edição não autorizada em 1674, e na sequência da reação da viúva de Molière, Armande Béjart, o texto é integrado no sétimo volume da edição oficial das Œuvres em 1675, publicada por Denis Thierry, Claude Barbin e Ribou. Em 1682, os mesmos editores contestam a edição anterior, reconhecendo o acesso a uma versão “revista, corrigida e aumentada” que assumem e publicam como sendo a última e verdadeira versão da peça. Segundo Georges Forestier, Claude Bourqui e Anne Piéjus, não seria de estranhar que as alterações tivessem sido introduzidas por Donneau de Visé, o mais célebre polígrafo da época, amigo da família de Molière e muito próximo de Armande Béjart, a partir de textos e rascunhos do próprio autor. Escusado será dizer que, neste domínio, serão sempre mais as perguntas do que as respostas. Na edição da Biblioteca da Pléiade reproduz-se “o único texto cuja autoria não pode ser contestada”, ou seja, o da primeira edição oficial em 1675, e separadamente as cenas divergentes da edição de 1682.


No entanto, é esta última que nos habituámos a ver nos palcos e que podemos ler na quase totalidade das restantes edições. O texto publicado em 1682, caucionado por La Grange, ator fetiche de Molière, retoma o de 1675 e é comummente assumido como a edição definitiva de O Doente Imaginário. Foi esta edição que seguimos para esta tradução, ainda que tenhamos recorrido com alguma frequência a análises comparativas das duas edições, com o apoio incontornável das preciosíssimas notas dos editores das Œuvres complètes da Biblioteca da Pléiade.


Ordem


Segundo Michel Foucault, a organização minuciosa da disciplina estará na base das estruturas de poder das sociedades modernas. A esta organização não serão alheias as noções de “ordem” e de “classificação” que estão na base do pensamento clássico. “As relações entre os seres serão efetivamente pensadas sob a forma da ordem e da medida”, afirma Foucault, “mas com esse desequilíbrio fundamental de se poder sempre reduzir os problemas da medida aos da ordem”.(3) Por outro lado, a estratégia do encarceramento posta em prática a partir de meados do século XVII terá sido o primeiro passo para o estabelecimento de uma sociedade que visa disciplinar, enquadrar e controlar o corpo social, e que tem como ponto de partida a “domesticação” do corpo individual.


Em 1656 é criado em Paris o Hospital Geral. Aquilo que poderia parecer apenas uma reforma administrativa revelar- -se-ia, segundo Foucault, “uma estrutura semijurídica” que tem como função controlar uma população pobre que é vista como fonte de perturbação do equilíbrio social: hospitalização e internamento nada têm que ver com a medicina. O desejo de controlo transformar-se-ia rapidamente no modus faciendi da ordem monárquica e burguesa que se estabelece em França durante este período. Os textos de Molière sobre a medicina e sobre os médicos constituem uma parte importante da sua obra.(4) O autor denuncia uma medicina praticada com base em preconceitos, ideias falsas ou ultrapassadas, que desvalorizava a fisiologia e a anatomia, e que, apesar das descobertas e avanços recentes, continuava a acreditar na teoria humoral hipocrática e galénica, prescrevendo terapêuticas muitas vezes duvidosas e quase sempre ineficazes, que Molière resumiu na célebre fórmula de Argão: “Clisterium donare, postea seignare, ensuitta purgare”. Na verdade, os médicos de Molière surgem sempre como verdadeiros “mestres da ordem” – ainda que essa ordem caia rapidamente por terra ao transformar-se sistematicamente “num verdadeiro galimatias”.
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